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O avesso do avesso do avesso [do avesso] é o título de uma exposição que começou há alguns meses no contexto do programa doutoral em Artes Plásticas da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto. Em tempos de Virose, assumiu a forma digital e caminhou até aqui com um corpo coletivo ampliado, reunindo vozes de artistas que estão a re-pensar o próprio trabalho diante das restrições impostas ao convívio social no encontro com a arte. Muitos dos artistas aqui reunidos, trabalham comumente com outras materialidades e se dispuseram nesse momento ao embate com o imaterial1 – o que ressalta o caráter experimental2 deste projeto.
O avesso do avesso do avesso do avesso é também verso de Caetano Veloso, um novo baiano recém-chegado à São Paulo na década de setenta do século passado. Imigrante em seu próprio país, Caetano passa do estranhamento inicial da dura poesia concreta3das esquinas paulistanas ao reconhecimento do lugar4 “Sampa” em que se dissolve a cada verso5. Afinal, a mente apavora o que ainda não é mesmo velho. E habituados que estamos aos museus, chamarmos de exposição esse espaço estrangeiro [para alguns] em que adentramos pelo acaso do vírus, chega a carregar o olhar de estranheza.
O avesso do avesso do avesso é também essa condição que nos foi colocada em tempos pandêmicos6. As forças violentas, necrófagas que se propagam em ondas pelos ares afeta-nos em uma intensidade escabrosa. A vida virada ao avesso, a urbe dentro de casa, dentro do corpo, o medo do outro, de si, da morte. Um tempo de abalos sísmicos a nos dizer que o dentro é fora e o fora é dentro, que o antes é o depois7, que não há sujeito pensante isolado de corpo coletivo. Estamos aprendendo a sustentar esse mal-estar, resistir ao analgésico, lidar com os nós no peito, na garganta, a falta de ar, em uma retomada da potência de criação, da trama relacional que tece metamorfoses no tempo porvir.
O avesso do avesso do avesso [...] é tudo isso e nada também. É um (falso) Aleph8 escondido em meio a pandora das telas brancas. É um lugar e um não-lugar. É também todos os lugares contidos na tela-tempo suspenso nas suas mãos nesse momento, caro navegante.9

Maio de 2020
Gabriela Carvalho10

1. Le saut dans le vide, foto-performance de Yves Klein, 1960:http://www.yvesklein.com/en/oeuvres/view/6/immateriel/643/le-saut-dans-le-vide/?of=0
2. “DA ADVERSIDADE VIVEMOS!” (Oiticica, 1967)
3 Poesia é risco, performance de Augusto de Campos, Cid Campos e Walter Silveira, 1996:http://site.videobrasil.org.br/en/canalvb/video/1713108/Poesia_e_risco_Augusto_de_Campo_Cid_Campos_e_Walter_Silveira_11o_Festival
4. Lugar é espaço permeado por memória, por travessias, vozes daqueles que abriram as trilhas, “uma porção de terra/cidade/paisagem vista de dentro”. Adentrar terreno estrangeiro pede temporalidade, os sentidos atentos a criar conexões com o que é ainda estranho. A escuta se radicaliza na tentativa de absorver os sons reconhecíveis no lugar-corpo que trazemos dentro. Na ressonância interior dessas vozes, germina-se a possibilidade da fala. Alocadas em ninho-garganta11, as palavras crescem, tomam forma e ganham alma na sonoridade vibratória que se projeta da boca pelo ar. Ser estrangeiro em lugar algo-rítmico é estranhar o habitat, lançar um olhar desconfiado pelo que é desconhecido, não-familiar. Ser ex-ótico, olhar pela via do estranhamento, do incômodo que reverbera no corpo-pele e germina, cria seres, palavras, larvas que agora deslizam nesse campo numérico inóspito.
5. Vertere, origem do verso, do avesso, do adverso. Em tradução do latim seria algo como virar ou dobrar. Remete a língua praticada entre os agricultores em uma comparação com o ato de arar a terra em faixas que ao fim do terreno, viravam e recomeçavam em uma nova linha. Diz-se que na época clássica, os gregos escreviam até o fim da linha e então passavam para baixo, chamando-a de um vertere, verso. Podemos pensar que o avesso do avesso do avesso do avesso seja um poema, um campo arado, uma fita de Moebius, “uma superfície topológica na qual o extremo de um dos lados continua no avesso do outro, o que os torna indiscerníveis”. (Rolnik, 2018)
6. “Períodos de convulsão são sempre os mais difíceis de viver, mas é neles também que a vida grita mais alto e desperta aqueles que ainda não sucumbiram à condição de zumbis – uma condição a que estamos todos destinados pela cafetinagem da pulsão vital” (Rolnik, 2018)
7. Caminhando, obra de Lygia Clark, 1963:https://www.moma.org/audio/playlist/181/2392
8. “Na parte inferior do degrau, à direita, vi uma pequena esfera furta-cor, dequase intolerável fulgor. A princípio, julguei-a giratória; depois, compreendi que esse movimentera uma ilusão produzida pelos vertiginosos espetáculos que encerrava. O diâmetro do Aleph seria de dois ou três centímetros, mas o espaço cósmico estava aí, sem diminuição de tamanho. Cada coisa (o cristal do espelho, digamos) era infinitas coisas, porque eu a via claramente de todos os pontos do universo. Vi o populoso mar, vi a aurora e a tarde, vi as multidões da América, vi uma prateada teia de aranha no centro de uma negra pirâmide, vi um labirinto roto (era Londres), vi intermináveis olhos próximos perscrutando-me como num espelho, vi todos os espelhos do planeta e nenhum me refletiu, vi num pátio da rua Soler as mesmas lajotas que, há trinta anos, vi no vestíbulo de uma casa em Fray Bentos, vi cachos de uva, neve, tabaco, veios de metal, vapor de água, vi convexos desertos equatoriais e cada um de seus grãos de areia, vi em Inverness uma mulher que não esquecerei, vi a violenta cabeleira, o altivo corpo, vi um câncer no peito, vi um círculo de terra seca numa calçada onde antes existira uma árvore, vi uma chácara de Adrogué, um exemplar da primeira versão inglesa de Plínio, a de Philemon Holland, vi, ao mesmo tempo, cada letra de cada página (em pequeno, eu costumava maravilhar-me com o fato de que as letras de um livro fechado não se misturassem e se perdessem no decorrer da noite), vi a noite e o dia contemporâneo, vi um poente em Querétaro que parecia refletir a cor de uma rosa em Bengala, vi meu dormitório sem ninguém, vi num gabinete de Alkmaar um globo terrestre entre dois espelhos que o multiplicam indefinidamente, vi cavalos de crinas redemoinhadas numa praia do mar Cáspio, na aurora, vi a delicada ossatura de uma mão, vi os sobreviventes de uma batalha enviando cartões-postais, vi numa vitrina de Mirzapur um baralho espanhol, vi as sombras oblíquas de algumas samambaias no chão de uma estufa, vi tigres, êmbolos, bisões, marulhos e exércitos, vi todas as formigas que existem na terra, vi um astrolábio persa, vi numa gaveta da escrivaninha (e a letra me fez tremer) cartas obscenas, inacreditáveis, precisas, que Beatriz dirigira a Carlos Argentino, vi um adorado monumento em La Chacarita, vi a relíquia atroz do que deliciosamente fora Beatriz Viterbo, vi a circulação de meu escuro sangue, vi a engrenagem do amor e a modificação da morte, vi o Aleph, de todos os pontos, vi no Aleph a terra, e na terra outra vez o Aleph, e no Aleph a terra, vi meu rosto e minhas vísceras, vi teu rosto e senti vertigem e chorei, porque meus olhos haviam visto esse objeto secreto e conjetura) cujo nome usurpam os homens, mas que nenhum homem olhou: o inconcebível universo.” (Borges, 1949)
9. Agora, video-poema de Arnaldo Antunes, 1993:http://www.youtube.com/watch?v=9FROBNBoTgQ
10. Gabriela Carvalho (Brasil, 1988) costuma ser curadora, escritora (seria artista?), produtora, professora, cozinheira, dançarina e, atualmente, desenvolve um projeto de investigação no doutoramento em Artes Plásticas da FBAUP no campo da linguagem curatorial. Parte da noção de escritura como aquela que inscreve algo no tempo, que marca a ruína da história, para pensar a dimensão catalógica (do grego kata+logos) da prática curatorial. Sobre este logos, lança-se então um movimento endógeno de desconstrução com o intuito de desarticular o eixo falogocêntrico das exposições em uma perspectiva descolonializadora das artes e, consequentemente, das práticas curatoriais. O que por si só consiste em um necessário ato de fracasso. Como podem ver, continuo tentando.
11. Receita para aquecer um ninho-garganta Você vai precisar de: - um pedaço pequeno de gengibre; - um pedaço pequeno de cúrcuma; - um dente de alho; - um limão (de casca verde); - um pau de canela; - uma colher de mel; - meio litro de água. Pique em pedaços menores o gengibre, a cúrcuma e o alho. Em uma panela aqueça esses ingredientes junto com a água e o pau de canela. Após levantar fervura deixe ainda por cinco minutos. Ao final, espremer o limão e misturar a canela. Beber ainda quente. Mantenha o corpo aquecido. É tiro e queda para o ninho-garganta, tem gente que brota até canto. A vó dizia que também é bom pra reforçar a imunidade. (A vó, 1996)

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